domingo, 2 de setembro de 2012

As duas faces da Lua

Meus olhos se abriram nublados, visão dupla, tripla talvez. Milésimos antes de abrir esses olhos que enxergam mal de longe, pensei estar no conforto da minha cama.
O chão na vertical agredia asperamente um lado da minha face, enquanto o outro era beijado suavemente por aquela garoa noturna. A luz da lua que timidamente passava por entre as nuvens, iluminava frouxamente aquele beco, mas o suficiente para perceber que dos ferimentos de outrora, somente as manchas de sangue restaram em minhas roupas estraçalhadas. Mais um confronto inútil, com o mesmo ser tão inútil quanto, isso já estava ficando monótono...
“Lisa, vá logo pra casa sua cadela imbecil!” Sua voz se amplificava em minha mente, e o reflexo de Laura reprovava-me da superfície de uma poça de água. Aquela familiar expressão de censura que me infligia ao tomar atitudes, que por conta do seu gênio forte, ela jamais tomaria.
“Anda idiota! Está esperando o quê?” Acabei acatando-a, até porque estava sem nenhuma disposição para discutir em meio a um beco escuro com uma poça de água suja.
Minhas roupas não estavam em sua melhor forma, por sorte era tarde o suficiente para que uma moça em roupas rasgadas repletas de sangue passasse sem ser confundida com uma vítima de assalto, ou esfaqueamento talvez. Somente me importava chegar em casa.
A fome me fez atacar instintivamente a geladeira. Meus confeitos de chocolate sempre me davam um alívio momentâneo da tensão, entretanto mesmo ao sentir também  o calor do chuveiro e o vapor aconchegante me envolver, não pude evitar que as lembranças de Silver Lake atingissem minha mente como uma faísca numa sala com gás.
“Aqueles malditos não nos deixarão em paz!”
Rosnava Laura do espelho da pia, fosco com o vapor do banho.
Estava cada vez mais difícil fugir, de todas as vezes, a última foi a mais difícil, embora de toda elas, nunca consegui ficar tanto tempo foragida. Fazia tempo que não topava com os membros da Equipe de Captura, os encontros estavam cada vez mais raros, porém é ingenuidade pensar que desistiriam de mim um dia, ainda mais se tratando do interesse dos Garamonds em me manter interna naquele lugar.
Meu sabonete refletia alvamente como os azulejos daquele banheiro onde tantas vezes chorei debaixo do chuveiro frio. Ou como os jalecos que me dopavam de medicamentos, e assim como aquelas outras alma sob custódia daquele monstro chamado Silver Lake, acabava perdendo-me em mim mesma alheia à minha própria existência.
Não sei quanto tempo durou aquele banho, minutos ou horas talvez, mas a lembrança de Andrew piscou por um segundo em minha mente, ele ainda estava vivo, e pior que ser recapturada, era padecer pelas mão daquele traidor. “Não, pelas mãos dele seria desonra!”
Dias e dias aprisionada naquele lugar, pagando por um erro pelo qual não tive culpa. Um triste engano que manchou a pura linhagem dos Garamonds. E livre, correndo o risco de pagar por outro erro no qual também não tive parte.
“Que bela vida te deu Gaia! Perseguida pela Equipe e pelo verme do tio!”
Um estridente “Chega!” escapou-me dos lábios ecoando por toda a casa. Laura conseguira abusar da minha paciência sempre tão controlada.
Eu não queria pensar naquilo agora! No mesmo velho Andrew e seu coração amargo que matou minha mãe e jurou por todos os encarnas se vingar do meu pai atingindo a coisa que ele mais amava na vida: Eu.
Não queria pensar naquilo agora... no quanto sentia falta dele, na agonia se não saber onde está a mais de quinze anos, na tristeza ao ter certeza do seu amor, e na raiva pelo desprezo do meu avô após ter pego minha guarda, mas os pensamentos fluíam quentes e involuntários, tão constantes como a água do chuveiro.
“Ela pagou por seguir o coração. Você está pagando por seu pai ter seguido o próprio coração. Mas ele foi fraco, um inútil, e você eu sei que não é Lisa! Vai ficar choramingando isso até quando?”
Era de muito tempo o desejo das duas famílias em unir-se, Garamonds e Hills, desejo esse que desde a infância germinava em Andrew uma paixão que mais tarde se tornaria doentia, pela minha mãe, Victoria Hills, ou Pérola da Lua, como os Portadores de Gaia a chamavam.
Tanto Andrew quanto meu pai, Willian Garamond, eram parentes da linhagem do Senhores de Prata, porém secretamente o sentimento entre meus pais se fortalera a cada dia, resultando na tão desejada união das duas famílias e  protegendo os preceitos da Lei da Litania (onde dois garous não poderia jamais procriar e gerar impuros), e no grande despeito do meu tio.
Porém, o que ninguém esperava aconteceu. Meu pai teve o que se chama “transformação tardia”, e quem todos pensavam que era um parente, era na verdade um garou.
A notícia se espalhou como um rastro de pólvora aumentando ainda mais o ódio de Andrew ao ver que a perdeu para alguém que ainda “manchou” a pureza da família.
Andrew matou minha mãe com uma faca feita de prata, e teria feito o mesmo a mim se no meio da viagem meu pai não tivesse esquecido uma pasta com documentos.
A casa ficou destruída, ambos gravemente feridos. Andrew deserdado, desapareceu no mundo e jurou vingar-se. E meu pai... deixou-me com meu avô, Jeremy Garamond, e igualmente desapareceu. Porque? Não sei.
Depois disso o que senti foi o constante desprezo do meu avô, por conta da minha origem quase bastarda. Não lembro de um dia sequer que tenha fluido uma migalha de ternura ou afeto dele. Todo esse quadro piorou ao perceberem que eu tinha algo de errado, foi quando descobri que Laura fazia parte de mim.
Apesar do constrangimento que minha existência causava, algo em seu íntimo, um motivo o qual nunca tive ciência, o impulsionava a me proteger e manter viva. Com todas as investidas de Andrew contra minha vida e a de meu avô, e todos os problemas que Laura causava, meu avô foi influenciado a me manter interna em uma instituição para recuperação psiquiátrica administrada pelos Garras do Asfalto chamada Silver Lake.
Com isso ele mataria os três coelhos que corroíam-lhe as víceras: Protegida da perseguição de Andrew, trataria desse “problema” chamado Laura, e me manteria escondida das vistas da sociedade, a “vergonha da família” estaria oculta debaixo do tapete.
Lá tive muito tempo para aprimorar-me nos desenhos e na escrita com os talentos que a Lua Minguante me dera, cheguei a publicar algumas coisas, e quando não ganho a vida desenhando cartoons ou tatuagens, faço tapeçarias com pele de Uivadores Negros com feitos garous para os caerns do estado, eu poderia me considerar uma pessoa um tanto famosa, para desespero dos Garamonds.
Aquela noite estava realmente impossível como todas as outras, essas lembranças ficam me atacando, hoje acho que com mais intensidade por conta do encontro com Andrew naquele beco.
“Tão idiota que poderia ter se certificado da morte arrancando-lhe o pescoço, mas não, provavelmente se virou e fugiu pela penumbra. Idiota inútil!” Laura já não estava embaçada pelo banho quente, e o vapor já se fora do ambiente ao terminar de me vestir.
Fui ao quarto relaxar e compor algo,na esperança de tentar me desvencilhar daqueles pensamentos atormentadores.
Meu traço estava tão fundo, grafite escuro, negro como minha origem, como minha cela em Silver Lake após o toque de recolher.
 “Fugas, fugas, fugas. Nunca se esmaecia meu desejo de se ver livre daquele inferno!”
“Odeio todos! Todos!”
“Andrew, vira-lata maldito! Vai pagar pelo que fez a minha mãe, ao meu pai, e a mim!”
“Senhor Jeremy, meu avô, como pôde... Porque???Desgraçado!!!”
“Pai, sinto tanto sua falta, PORQUE O SENHOR ME DEIXOU SOZINHA!!!”
Logo uma onda quente percorreu todo o meu corpo, todo ele se arrepiava como numa possessão demoníaca. Minha visão ficou turva e na ânsia de respirar e me apoiar acabei derrubando um frasco com tinta e um porta-canetas que estavam sob a escrivaninha. Senti meu corpo subtamente enfraquecer e se deixar cair no carpete, num baque surdo em meio àquela madrugada de lua cheia.
Não sei ao certo quanto tempo se passou no banho, muito menos ali jogada no carpete.
Ao acordar, não precisei levantar-me para notar que a droga da tinta tinha se espalhado por uma boa parte do carpete, aquilo ia dar um trabalho dos diabos para remover. E com a queda, tanto o porta-canetas feito de vidro fosco, quanto uma caneta, presente de Suzan Smith ou Canção de Luna, estavam destruídos. O presente da minha única amiga em Silver Lake, uma das raríssimas lembranças boas que tenho daquele maldito pulgueiro!
Logo um pensamento me deu a determinação necessária para vencer aquela noite infernal, e a inspiração para as novas histórias que precisava escrever.
 “Não sou fraca como meu pai, nem baixa e suja como Andrew, muito menos uma hipócrita como meu avô! Posso não ser a melhor pessoa do mundo, mas faço o melhor que posso, e farei o possível para não me igualar à inutilidade de todos eles. Eles vão pagar por tudo que me fizeram, e não pouparei nem o meu pai, este que devia estar ao meu lado ao invés de fugir como um rato covarde. Chega de me remoer pensando nesses desgraçados, ao contrário de Lisa, ser a vítima não faz parte do meu roteiro.”
Mal terminada a frase, peguei do chão o frasco de tinta vazio, e antes que ela pudesse vir com algum sermão imbecil, atirei-o contra o espelho da penteadeira fazendo-o em mil pedaços.
Enfim sozinha, pude começar a escrever de fato, e somente na companhia do meu querido whisky 12 anos.

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